terça-feira, 15 de novembro de 2011

Um conto desengonçado

Ele olhou para trás uma última vez. Com seu olhar doce, terno e inseguro, mas assertivo, voltou-se para o lado do horizonte onde nasce o sol. Ele queria-o avistar, queria-o só para si. Um novo dia, um novo amanhecer, um tão desejado recomeçar. 
Tinha afirmado para ele mesmo que não caminharia mais naquela direcção, de encontro àquelas memórias e sentimentos engolidos pelo tempo que já fora. Mas indubitavelmente somos humanos e, de vez incerta, o coração toma as rédeas à razão.

Há momentos de fragilidade, e Sebastião deixara-se levar pela incerteza do lance temporal que momentaneamente separou da sua objectividade, da sua segurança, da sua certeza. Apesar de tudo tinha mágoas incrustadas na sua alma, emaranhadas em teias de incompreensão e orgulho ferido que só o recordar lhe acertava como setas pontiagudas. Existia uma batalha campal no seu interior, ferindo-o moralmente as hastes de madeira, armadas de um ferro e atiradas por meio de um arco. 

Para ele, aquela mulher, pendia-lhe na memória com um sabor ora doce, ora amargo. Ela teria sido a luz dos seus olhos durante o período certo, aquele em que não precisou de se contemplar interiormente. Acomodara-se àquela companhia meiga e amorosa, nunca conseguindo ser o melhor para ela. No fundo ele sabia, faltava admiti-lo em surdina a si mesmo, mas era maior do que ele, maior que a sua compreensão e empenho. Não estava preparado. No seu interior a chama tinha desvanecido com o tempo. Agora tudo fazia sentido.

Embebido no seu pensar, no seu mundo, ele continua a seu trilhar. O coração, perdido e enclausurado, como um pendente de um relógio, não percebe a profundidade do buraco que causou naquela vida, naquela pessoa que lutou com todas as forças para que ele a amasse até que elas se esgotaram.
Ele olhou para trás mais uma vez, com a certeza que esse olhar seria o último de uma vida...

Nesse despertar ela sonhou com trovões e tempestades de areia, remoinhos de vento e ondas gigantes que assolavam a sua ilha... Gemia, tremia, tentava correr e fugir. Chorava, desesperava, mas no meio do desastroso cenário um foco de luz surge do céu revolto... Aquece-a e ela sente-se mais leve...
"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certezade que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus."
( Eugénio de Andrade)

Ajeihad